por Lucas Lacerda | Folhapress
O retorno das audiências de custódia presenciais, que deveria acontecer em outubro deste, ficará para março de 2023. Os 30 dias determinados pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça) para a volta terminariam na última sexta-feira (14), mas no dia 7 o próprio órgão decidiu estender o prazo por mais três meses.
Desde 2015, ano de estabelecimento das audiências, a pessoa que é presa deve ser levada à presença de um juiz em até 24 horas, acompanhada de advogado ou da Defensoria Pública. O magistrado avalia a legalidade do flagrante e da prisão e se haverá medidas cautelares e investiga, por meio de indícios e relatos, se houve maus tratos ou tortura.
As audiências foram suspensas no início da pandemia e, já em 2021, permitidas na modalidade de videoconferência enquanto durasse a situação de emergência sanitária, que terminou em abril deste ano.
O modelo foi criticado desde a sua instituição por entidades de direitos humanos e defensores públicos, que contestam a eficácia de verificar tortura e promover um ambiente seguro para relatos dos presos.
Na decisão que prorroga a retomada presencial, o CNJ diz que é necessário "um melhor aprofundamento da matéria ora debatida" e sinaliza a possibilidade de uma audiência pública sobre o tema, sugerida pelo DMF (Departamento de Monitoramento e Fiscalização Carcerária do CNJ), que deve acontecer em novembro.
Procurado pela reportagem, o órgão informou, por meio da assessoria, que não vai se manifestar sobre o novo prazo.
"A discussão da prorrogação é absolutamente indevida. Isso já deveria estar funcionando, assim como não deveria ter sido interrompido. Precisamos simplesmente cumprir a lei", diz Hugo Leonardo, presidente da diretoria do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa).
Para ele, o procedimento feito por videoconferência não pode ser considerado uma audiência de custódia, já que é impossível verificar pela tela o estado emocional da pessoa, o nervosismo, o acesso à informação e a proteção do relato.
Perita do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, Camila Sabino segue na mesma linha. "No histórico de inspeções que fazemos, quando é feita de modo virtual, a pessoa privada de liberdade não está efetivamente protegida", diz.
"Em uma das inspeções [em São Paulo], vimos que existem salas com câmeras e janelas de vidro. Não tem como assegurar que um policial penal não vá fazer uma leitura labial e há pontos cegos nas câmeras", afirma.
Em São Paulo, o TJ-SP (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo) pediu, em um ofício de 10 de outubro ao CNJ, que seja mantida a realização de audiências de custódia por videoconferência, ao menos na Justiça paulista.
Entre as justificativas, o tribunal diz que já empenhou esforços para ampliar a realização das audiências por vídeo, e cita que 33 das 54 circunscrições judiciárias (unidades administrativas do Judiciário) paulistas já utilizam a modalidade.
O órgão afirma que realizou 62 mil audiências de custódia, 34 mil delas por videoconferência. Questionado pela reportagem, o tribunal diz não ter dados sobre relatos de tortura.
Para Leonardo, do IDDD, os números não permitem uma leitura sobre eficiência. "Sucesso não é isso. Sucesso, em processo penal, significa a qualidade do ato que se pratica, e não a mera formalidade de ter sido praticado", diz ele.
Um dos argumentos utilizados no pedido é um projeto-piloto em Guarulhos, que o TJ-SP considera um sucesso. Em 2021, a estrutura para audiências remotas foi montada na Delegacia Seccional de Polícia da cidade --ponto criticado pela Defensoria Pública, por manter o preso em um ambiente no qual o policial que efetuou a prisão pode estar presente.
Como benefícios, o tribunal cita a redução de custos, de deslocamentos e da necessidade de escolta, além do uso de câmeras "que permitem a visualização total do custodiado", segundo o texto.
A visualização da sala, no entanto, é criticada por uma nota técnica do Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. O documento cita o relato de um defensor público que participou de audiências no local, e que apontou pontos cegos.
Segundo o texto, houve interrupções em momentos diversos na videoconferência, que impossibilitam a sensação de proteção da informação.
"Como o link de audiência é o mesmo para entrevista, muitas vezes os/as Promotores/as de Justiça ingressam durante a entrevista, devendo o/a Defensor/a Público/a ficar atento, interromper a entrevista e solicitar a retirada", diz o relato no documento da Defensoria.
"Era possível ver agentes nas imagens. Como eram os mesmos uniformes, a pessoa se sentia falando com as próprias pessoas que a prenderam, e não no Fórum, com outra escolta, outro ambiente. Foi um projeto piloto que, no meu entender, foi fracassado", afirma o defensor público Diego Polachini.
De acordo com ele, as audiências remotas são exceções para casos extremos, e não é viável, do ponto de vista legal, regulamentar o modelo de forma permanente. "São casos muito absurdos, como uma pessoa internada, porque levou um tiro, que são casos graves. Mas o Tribunal quer transformar isso numa regra", afirma.
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